Uma experiência radical e voluntária envolvendo centenas de injeções de veneno de cobra no próprio corpo pode ser a chave para um avanço científico no combate às picadas de serpentes. O norte-americano Tim Friede, de forma autodidata e por conta própria, se expôs a toxinas letais de 16 espécies entre 2001 e 2018, na tentativa de desenvolver resistência e auxiliar na criação de um antídoto universal.
A ousadia de Friede, que se picou ou injetou veneno em si mesmo 856 vezes ao longo de 17 anos, chamou a atenção de uma equipe da empresa de biotecnologia Centivax. Liderado pelo engenheiro imunológico Jacob Glanville, o grupo analisou os anticorpos do “homem imune” e, com base neles, formulou um novo coquetel capaz de neutralizar os efeitos de algumas das cobras mais perigosas do planeta.
Os primeiros resultados foram divulgados na revista científica Cell e são promissores. O tratamento, composto por anticorpos humanos e uma substância chamada varespladib, foi 100% eficaz contra os venenos de 13 espécies em testes com camundongos. Contra outras seis, a proteção foi parcial, mas ainda significativa.
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Hoje, os soros antiofídicos tradicionais são produzidos com anticorpos extraídos de cavalos ou ovelhas, após esses animais serem imunizados com pequenas doses de veneno. Apesar de funcionarem, esses métodos podem causar reações adversas em humanos e têm ação limitada, dependendo da espécie que causou o acidente.
A nova abordagem busca romper essa barreira. Por utilizar anticorpos humanos, o tratamento tende a ser mais seguro, eficaz e aplicável em diferentes regiões do mundo — mesmo quando não se sabe qual foi a cobra responsável pela picada.
Mais de 100 mil pessoas morrem por ano vítimas de ataques de serpentes, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, que considera o envenenamento uma doença tropical negligenciada. O objetivo da equipe agora é ampliar os testes, começando por cães na Austrália, antes de avançar para os estudos em humanos.
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“O ideal seria chegar a um antídoto único que funcione contra todas as cobras venenosas, mas pode ser que tenhamos que desenvolver dois coquetéis, um para cada grupo principal de serpentes”, explicou o bioquímico Peter Kwong, da Universidade de Columbia e coautor do estudo.
Se os próximos resultados forem positivos, o experimento que começou com um homem comum e muita coragem poderá salvar milhares de vidas mundo afora.